A mística do time capaz de superar qualquer dificuldade e reerguer-se quando parecia impossível junto com os mais pobres da sociedade, foi forjada nos primeiros anos do Santa Cruz Futebol Clube. O primeiro obstáculo a ser vencido foi o racismo.
As seções de cartas dos jornais do início século XX costumavam receber queixas diárias contra os “jovens vândalos e negros desordeiros” que “chutavam bolas e trocavam pontapés” na Boa Vista, na rua da Glória e no terreiro em frente à igreja de Santa Cruz. A polícia era chamada, interrompia as partidas.
Os meninos, então, resolveram enfrentar a repressão com ousadia: criaram seu próprio clube, o Santa Cruz, e já no ano seguinte se inscreveram para participar do recém-fundado campeonato contra clubes realmente organizados, repletos de sócios endinheirados, ou contra times de funcionários das empresas inglesas, amadores apenas no nome, pois eram na verdade financiados pelos próprios patrões.
A notícia da façanha dos dois primeiros jogos correu a cidade: os rapazes do pátio de Santa Cruz meteram 7 x 0 no Rio Negro que, derrotado, exigiu revanche e ainda impôs condição: Sílvio Machado, autor de cinco gols, não poderia jogar. No segundo jogo, o Santa ganhou por 9 x 0. Carlindo, escolhido para substituir Sílvio, marcou seis vezes. O adversário desistiu.
O fato de ser o único time da cidade (assim como do Norte e do Nordeste do Brasil), onde jogava um negro, no caso Teóphilo de Carvalho, o Lacraia, atraiu a simpatia dos mais humildes. Para aumentar a popularidade, os meninos escolheram a campina do Derby, vasto terreno plano onde hoje está a praça do Derby, para mandar seus jogos. Lá não havia arquibancadas nem muro e todos podiam acompanhar os jogos do Santa Cruz. Nos campos da avenida Malaquias e dos Aflitos era preciso pagar para entrar.
Quando o Santa virou um jogo lendário contra o América, em 1917, e foi o primeiro time da região a derrotar um rival do Rio de Janeiro (3 x 2 no Botafogo, em 1919), sua torcida já era a maior nas palafitas e favelas onde viviam os ex-escravos e seus descendentes.
No início dos anos 40, a aura do time capaz de fazer o impossível extrapolou as fronteiras do estado e se tornou conhecida em todo o País. Em plena II Guerra Mundial, com os submarinos alemães torpedeando navios na costa brasileira, o Santa Cruz aceitou um convite para jogar amistoso em Belém. De lá, seguiu para Manaus, sempre de navio. De volta à capital do Pará, dois jogadores (o goleiro King e o atacante reserva Papeira) morreram provavelmente infectados pelo tifo ou pela malária, contraídos durante a viagem pelo rio Amazonas.
Com o bloqueio dos portos, o time só chegou em casa depois de quase quatro meses, completando a viagem de trem e caminhões pau-de-arara. No entanto, a coragem e raça dos seus jogadores espalhou-se por todos os estados.